Quando a bola rolou para Brasil e Croácia na abertura da Copa do Mundo de 2014, há exatos dez anos, o “Portal da Copa” era a referência para a consulta de todos os documentos relacionados à organização do Mundial. Desde o torneio de 2018, na Rússia, porém, ele deixou de ser atualizado, e as informações ali já não estão completas.
Eram as matrizes de responsabilidade da Copa que permitiam levantar o que foi prometido, alterações nas obras, orçamentos que cresceram, o que não foi entregue e, por fim, quanto realmente o Brasil gastou. Hoje, é quase impossível descobrir…
“É impossível (saber). Inclusive, no nosso projeto a gente toma o cuidado de falar do preço e do legado considerando o que aconteceu fora dos estádios também. Porque nós temos aumento de turismo sexual, famílias que perderam suas casas para que obras pudessem acontecer. Qual é o custo disso? Você pode calcular o custo dos estádios, das obras de aeroporto, portos, rodovias… Mas o custo da Copa é muito amplo e envolve muitas coisas. Então é impossível chegar nesse valor”, disse Beatriz Farrugia.
Aos 34 anos, ela é jornalista de dados, professora da ESPM e autora do projeto “O preço de uma Copa” com outros três jornalistas brasileiros (Diego Salgado, Gustavo Zucchi e Murilo Ximenes). Desde 2011, eles pesquisam tudo relacionado ao Mundial de 2014.
“Até 2018 as informações estavam disponíveis. Depois os websites praticamente passaram a não existir mais. As informações estão inacessíveis e as que continuam acessíveis estão desatualizadas. Do meu ponto de vista, é feio para o Brasil não ser transparente. Um país que não sabe o quanto gastou, não sabe o legado de um evento desse porte, não tem história para contar e não consegue avaliar o que ele fez”, disse Beatriz.
Do mesmo lado dela, mas trabalhando praticamente sozinho, está o jornalista José Cruz, 79.
“Hoje, há uma dificuldade muito grande de se encontrar a informação. Ela existe, mas ela está muito escondida. Pelo tempo que passou e pelo interesse em não se mostrar que a Copa não foi aquilo que se prometeu em termos de benefícios comunitários. O que a gente sabe por alto em pesquisas assim, e o relatório da União mostra isso, é que o governo gastou ou investiu, como eles preferem dizer, R$ 35 bilhões”, disse para a reportagem.
Gaúcho de nascimento e há mais de quatro décadas morando em Brasília, ele noticiou gastos que mais do que dobraram, inclusive com pagamentos da mesma nota fiscal, escândalos de corrupção, prisões de políticos, afastamento de cartolas, obras abandonadas… E o legado?
“A Fifa sempre acena para as sedes como oportunidade de expansão e de melhorias para no pós-Copa ficar em favor da comunidade. Não foi o nosso caso. O setor hoteleiro em Brasília progrediu e houve melhora no aeroporto, mas o setor de atendimento hospitalar continua o caos, se não pior. Continuamos com o transporte de ônibus muito precário, inclusive no que diz respeito à qualidade desse transporte. Chove dentro dos ônibus, têm buracos no assoalho, janelas que não fecham.”
O governo do Distrito Federal também não entregou um VLT (Veículo Leve sob Trilhos), que sairia do aeroporto e atenderia muitas áreas de Brasília. Apesar disso, a capital federal nem pode ser colocada na lista de cidades mais problemáticas.
“Se alguém chegar em Manaus hoje e não passar pela Arena da Amazônia não vai lembrar que ela teve os olhos do mundo voltados pra cá dez anos atrás. A gente não teve um grande hospital, uma grande rede de saúde sendo de fato alimentada, abastecida e potencializada. Tanto é que durante a pandemia foi a cidade mais caótica do mundo. A gente tinha um projeto gigantesco de um monotrilho, que não saiu, e também um BRT, que fizeram algumas estações, mas como você não consegue fazer o sistema todo, não adianta ter uns pontos isolados. Acabou não indo para a frente”, disse Dante Graça, hoje apresentador do canal “A Crítica” e repórter na Copa-14.
O cenário é pior em Cuiabá.
Das principais obras ligadas à Copa apenas a Arena Pantanal ficou pronta no prazo. Outros três projetos apontados também como principais não foram para frente. Um deles é o Centro Oficial de Treinamento do Pari, cujas obras foram retomadas ano passado. O outro é o Hospital Universitário Júlio Müller, que deve ser entregue no fim do ano.
Mas nada se compara a epopeia do VLT, que ligaria o aeroporto em Várzea Grande à Cuiabá. O governo chegou a custear a instalação dos trilhos em alguns trechos, mas o projeto teve várias reviravoltas e escândalos de corrupção. Foi transformado em um BRT e, mesmo sem estar pronto, já consumiu mais de R$ 1 bilhão em verbas federais.
Natal, Fortaleza, São Lourenço da Mata, Salvador, Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre também tiveram seus problemas, porém em menor escala do que Cuiabá. O que há em comum entre as 12 sede é realmente a falta de transparência e clareza.
“Eu fiz 230 pedidos de Lei de Acesso à Informação para 33 órgãos durante 2021. Algumas respostas que recebi foram: ‘A gente não sabe do que você está falando’. Isso é muito sério no quesito de transparência porque significa que tem um servidor público que está ali na responsabilidade de manter esses dados, esses documentos, e a gente não sabe disso, tá? Então, é impossível a gente fazer um estudo e chegar a um consenso sobre o legado da Copa diante dessa situação”, disse Beatriz Farrugia.
O outro lado da moeda
Durante a preparação para a Copa tinha um homem que perdia em importância apenas para Joseph Blatter (presidente da Fifa), Jérôme Valcke (secretário-geral da entidade) e Ricardo Teixeira, presidente da CBF que renunciaria em 2012 e deixaria em seu lugar José Maria Marin. Era Ricardo Trade, o CEO do Comitê Organizador da Copa e responsável pelo orçamento de R$ 1 bilhão.
“Como nós não erramos, sobraram 10 milhões de dólares e entregamos uma Copa com qualidade, com todos os serviços prestados”, disse à ESPN.
Esse orçamento nada tem a ver com o dinheiro público. Trade cuidava das demandas da Fifa e, por isso, trabalhava com verba que vinha dos cofres da entidade para resolver questões relacionadas a operação e logística de cartolas e delegações antes e durante o Mundial.
As obras de infraestrutura e construção/reforma de estádios eram gastos de responsabilidade do país sede. Uma informação importante que, mesmo dez anos depois, Trade ainda busca esclarecer, assim como se busca desmitificar o tal “padrão Fifa”.
“Às vezes, as pessoas jogavam a culpa na Fifa por tudo. Tem um caso emblemático que a gente sofreu. Um jornalista disse: ‘A Fifa exige que troquem todas as cadeiras dos estádios por poltronas rebatíveis’, aquelas que levantam quando você sai para, num momento de pane, facilitar a fuga de todos. Aquilo é uma exigência dos bombeiros.”
Trade está entre os que defendem que aquela foi uma Copa com muitos legados, os principais foram as reformas dos aeroportos, o surgimento de novas arenas, que além de modernas modificaram os serviços oferecidos em dias de eventos, e o saldo final para a imagem do país, que vinha de um desgaste pré-Copa com as manifestações, os escândalos de corrupção e o cronograma com atrasos que colocavam o Brasil e a Fifa em constante embate.
É uma visão compartilhada por Ivan Martinho, que trabalha com marketing esportivo há mais de 15 anos e que planejou o serviço de hospitalidade das arenas na Copa. Hoje ele é presidente da Liga Mundial de Surf na América Latina e professor da ESPM.
“Essa mudança de infraestrutura é sem dúvida nenhuma um legado. Tivemos diversas mudanças do ponto de vista da profissionalização e da melhoria da indústria de marketing, como a entrada de novos profissionais, a entrada de mais empresas e, sobretudo, uma nova forma de enxergar a relação de marcas com o esporte. Mesmo os estádios que não participaram da Copa passaram a se aprimorar em serviço, fizeram reformas e tal. Então, há uma mudança muito grande da experiência compra de ticket digital, a experiência do fã, a cadeira demarcada, o próprio serviço de hospitalidade, os camarotes. Isso mudou completamente”, disse Martinho à reportagem.
Uma reflexão
Dez anos depois, ao passar a régua, a Copa do Mundo do Brasil deixa muitas perguntas no ar. Quantas obras foram prometidas? Quantas foram entregues? Quanto custou cada uma? Quem pagou por elas? Quem deve responder por aquelas obras que mudaram e consumiram dinheiro público e por aquelas que não foram entregues?
Questões pertinentes em um momento que o Brasil acaba de ser escolhido como sede da Copa feminina em 2027.
“Quando um país se candidata, a Fifa acena com essas dezenas de vantagens que o país sede. A gente não vê isso. Nós deixamos passar uma década de grandes eventos, do Pan de 2007 aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, e você vê que não temos um plano de esporte. O atual é de 1954. Você pode ver que os nossos grandes dirigentes de futebol estão banidos no futebol. O principal dirigente da Olimpíada, Carlos Arthur Nuzman, também. No fundo, eu lamento que a minha geração tenha passado, tenha sido crítica, tenha dado a sua contribuição, mostrando os furos e que no fim as coisas tenham ser concretizado como se previu, porque não havia outra forma, e muitas vezes, nós torcedores, ficamos preocupados apenas com a emoção proporcionada dentro de campo”, disse José Cruz.