O futebol vive em conflito com a tecnologia, mas é bom lembrar como era a vida antes do VAR
Desde o dia 1 da implantação do VAR, estava claro que o ambiente do futebol inglês era dos mais hostis à chegada da tecnologia. Sob este aspecto, é até possível argumentar que não causa surpresa que, cinco temporadas após a implantação da ferramenta, a Premier League esteja prestes a colocar em votação a sua extinção.
A questão é que este não parece um caso localizado. A notícia da possível abolição do VAR na Inglaterra chega dias após a ampla repercussão dada à decisão da liga sueca de sequer implantar a arbitragem de vídeo, numa resposta à rejeição de torcedores e clubes.
O que o futebol experimenta é um movimento de reação aos efeitos colaterais inerentes à arbitragem de vídeo, claramente amplificados por desvios de rota em sua adoção. É natural que aconteça. A experiência de assistir a jogos de futebol, transmitida por gerações durante mais de um século, é um bem cultural. E é compreensível que inovações capazes de alterar sensivelmente tal experiência causem algum tipo de repulsa.
O caso é que o futebol parece estar diante de algo muito mais complexo do que uma via de mão dupla: não se trata apenas de seguir com o VAR ou divorciar-se dele. É como se a simples existência da tecnologia tenha colocado o jogo, muito antes da adoção da arbitragem de vídeo, numa espécie de ponto sem retorno.
Na Premier League, o documento que dá origem à decisão de levar à assembleia de clubes a decisão sobre a extinção do VAR foi elaborado pelo Wolverhampton. E é difícil discordar de qualquer dos argumentos listados pelo clube para sustentar a proposta de retornar ao modelo tradicional de arbitragem. Porque, no fundo, ali estão todas as reações adversas que o recurso à tecnologia impõe a um jogo que tem na dinâmica, no ritmo e na subjetividade de tantas decisões algumas de suas chaves de funcionamento.
O documento dos Wolves cita a perda da espontaneidade em algumas celebrações de gols, diante da possibilidade de que uma checagem anule a jogada alguns segundos depois. Mais adiante, cita a quebra de ritmo com as longas checagens de jogadas e um grau de intervencionismo que subverteu a lógica inicial de “mínima interferência e máximo benefício”. Tal argumento, aliás, é surpreendente numa liga que parece evitar ao máximo recorrer ao VAR. A redução da autoridade da arbitragem de campo e a ampliação das controvérsias, sobrepondo tais discussões a debates técnicos e táticos das partidas, completam a lista de razões que podem fazer os ingleses rejeitarem a continuidade da arbitragem de vídeo.
Quase tudo isso era previsível. E o debate, certamente, ganhará corpo em outros países e ligas. A questão é se o futebol está disposto a retornar ao ponto delicado em que estava, se é que ainda se lembra dele. Porque o fundamental é evitar a ilusão de que a supressão do uso do VAR significará o fim da presença da tecnologia no ambiente do futebol. As dezenas de câmeras em torno de um campo continuarão presentes, assim como a computação gráfica, as linhas tracejadas para verificar impedimentos, a super câmera lenta e as imagens em 4k: a única diferença é que os únicos que não terão acesso a todos estes recursos serão os árbitros.
Assim, voltaremos ao mesmo ponto de cinco anos atrás. Como a informação é um elemento essencial do trabalho das empresas de comunicação, estas seguirão lançando mão dos melhores meios disponíveis para exibir as jogadas, inclusive as mais polêmicas, ao público. E, a partir deste instante, estaria reeditada a desigual batalha entre o olho humano e a máquina.
O resultado, e o futebol brasileiro conhece bem esta experiência: encerrado um jogo de futebol, as mesas redondas terão fartos recursos para desqualificar parte importante das decisões do campo, muitas delas vitais para determinar o resultado de um jogo. As interpretações de lances imperceptíveis à primeira vista, como toques de mão numa área congestionada, voltarão a escapar ao árbitro, mas não a quem leva as imagens à casa dos consumidores. E o futebol terá que conviver com a desconfortável sensação de homologar resultados que não parecem aceitáveis aos olhos do público, com decisões que não correspondem o que se vê em telas de definição cada vez mais alta.
Não é novidade que, nos últimos anos, tantas interpretações de jogadas – e o toque de mão é o exemplo mais clamoroso – foram alteradas pela Ifab para tentar eliminar ao máximo a subjetividade do jogo. O objetivo, no fundo, não era esse, mas sim tentar garantir que a decisão dos árbitros correspondesse, de forma mais frequente, ao que o espectador via em seu sofá, em sua TV gigante com imagem HD. A simples norma da intenção já não era convincente, porque a super câmera lenta e os seguidos replays fazem os desvios no braço de um defensor gritarem como se fossem um carrinho dado por trás. A percepção que o árbitro tinha em campo se afastava, cada vez mais, daquela do público.
A natureza do futebol torna a convivência entre o jogo e a tecnologia uma relação condenada ao eterno conflito. Algo que se origina não na decisão de adotar ou não os recursos tecnológicos, mas na simples existência deles. É como se os novos equipamentos, fruto dos progressos da sociedade, no lugar de oferecerem soluções, tivessem colocado o futebol contra a parede. E, em pleno 2024, encontrar meios de aprimorar o relacionamento e reduzir arestas, parece um caminho mais seguro do que rejeitar a tecnologia. Do contrário, o risco é colocar, semana após semana, resultados de jogos sob a sombra do descrédito. Pode ser fatal.